| (RE)PENSANDO A PROPORCIONALIDADE: UMA ANÁLISE NO ÂMBITO DAS PRISÕES CAUTELARES - Mateus Marques* |
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Publicado em FEV de 2013.
RESUMO: Este artigo tem como objetivo analisar a proporcionalidade no âmbito das prisões cautelares. Nesse sentido, faz-se um exame criterioso do referido postulado, de sorte a melhor contextualizá-lo no ordenamento jurídico e, com isso, avaliar com maior precisão as repercussões que esta possa trazer às prisões cautelares.
PALAVRAS-CHAVE: Proporcionalidade; prisão cautelar; liberdade; direitos fundamentais; garantias processuais.
O presente estudo tem como principal objetivo analisar especialmente a proporcionalidade no âmbito das prisões cautelares, de modo a evidenciar as garantias constitucionais com outros valores com dignidade constitucional.
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Desse modo, em um primeiro momento, faz-se uma breve introdução histórica sobre o postulado da proporcionalidade, em relação à origem e sua aplicabilidade no direito comparado. Em outro momento, estuda-se o postulado da proporcionalidade em relação ao processo penal no sentido de tratar o referido postulado como garantia constitucional, tendo em vista que é utilizado como o instrumento para garantir e concretizar valores de índole constitucional no caso concreto.
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Assim, mais adiante é realizado um parâmetro entre a prisão cautelar e a proporcionalidade, de modo que a decretação da prisão seja extremamente necessária
2. Um meio é necessário quando houver meios alternativos que possam promover igualmente o fim sem restringir, na mesma intensidade, os direitos fundamentais afetados (ÁVILA, Humberto.
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Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 11. ed. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 185).
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, pois, ao contrário, estará inserindo o imputado a uma condição análoga ao de condenado, porque o meio só será proporcional quando o valor da promoção do fim não for proporcional ao desvalor da restrição dos direitos fundamentais.
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Nesse sentido, estuda-se a imposição restritiva de direitos no processo penal e a liberdade individual nas prisões cautelares, de modo que, advinda da ponderação dos interesses da sociedade em confronto à liberdade do indivíduo, a preservar o núcleo essencial e intangível dos direitos, a dignidade humana deve ser adequada, necessária e proporcional. Por fim, o presente artigo busca, sob a visão constitucional, abordar o valoroso tema de tal sorte que a cultura de urgência disseminada na sociedade de risco afeta o tempo do Direito, bem como enfraquece as garantias fundamentais de liberdade e de tolerância e privilegia o poder judicial em detrimento do saber judicial.
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1 - BREVE HISTÓRICO ACERCA DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
A origem histórica do postulado da proporcionalidade obteve desenvolvimento na Alemanha a partir de 1875 até alcançar sua justificação dogmática com clareza após a II Guerra Mundial. A partir desse momento, prosperou a ideia de que as normas processuais penais deviam ser limitadas desde fora delas mesmas, por meio de princípios gerais e valores contidos em todo Direito Constitucional
3. Além disso, como refere Heinrich Scholler, “o princípio da proporcionalidade desenvolveu-se, originariamente, no âmbito do direito administrativo, mais especificamente das normas sobre o poder de polícia e seus limites, evolução que já remonta ao século XIX” (SANGUINÉ, Odone. A inconstitucionalidade do clamor público como fundamento da prisão preventiva. In:
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Estudos criminais em homenagem a Evandro Lins e Silva. São Paulo: Método, 2001).
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Remonta, assim, a célebre obra de Beccaria
Dos delitos e das penas. 11. ed. São Paulo: Hemus, 1995. p. 61.
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, a alusão da concepção de proporção e na ordem punitiva. Desse modo, veja-se o que, por volta de 1756, alinhavou o referido autor:
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O interesse geral não se afunda apenas em que sejam praticados poucos crimes, porém ainda que os crimes mais comuns prejudiciais à sociedade sejam os menos comuns. Os meios de que se utiliza a legislação para obstar crimes é mais contrário ao bem público e pode tornar-se mais frequente. Deve, portanto, haver proporção entre crimes e castigo.
Beccaria, ainda, antevê a necessidade da ponderação de interesses, de certa forma que,
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se os cálculos exatos pudessem ser aplicados a todas as combinações obscuras que levam os homens a agir, seria necessário buscar e estabelecer uma progressão de penas que corresponda à progressão dos delitos. O quadro dessas duas progressões seria a medida da liberdade ou da escravidão da humanidade ou da maldade de cada país. Bastará, pois, que o legislador sábio
5. Acresça-se: também o juiz.
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estabeleça divisões principais na distribuição das penalidades proporcionadas aos crimes e que, especialmente, não aplique os menores castigos aos maiores delitos.
Pode-se vislumbrar, dessa forma, inclusive em Aristóteles, nas lições de Reale Junior
Lições preliminares de direito. São Paulo: Saraiva, 1993. p. 56.
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, que tenha sido o primeiro a identificar, no fenômeno jurídico, o elemento da proporcionalidade, apregoando que
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proporcional é um meio-termo, e o justo é o proporcional. [...] Prossegue referindo-se à reciprocidade conforme a proporcionalidade uma vez que não há identidade absoluta entre a justiça e a retribuição exatamente igual [...] a origem da escolha está no desejo e no raciocínio dirigido a um fim.
8. OLIVEIRA. Fábio Corrêa Souza de.
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Por uma teoria dos princípios. O princípio constitucional da razoabilidade. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 71.
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Ínsita uma ponderação, igualmente, como se vê.
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Esse caminho se dá início, como afiançado, no direito administrativo, na França. Nesse país, conquanto não ostente ainda controle jurisdicional de constitucionalidade de suas leis, as decisões do Conselho de Estado, a partir de julgamentos derecours pour excès de pouvior
recurso por excesso de poder surgiu, inicialmente, em 1806, como forma de encaminhamento de denúncias do Conselho de Estado. A partir de 1872, o recurso tomou o perfil atual, transformado que foi o Conselho do Estado em órgão jurisdicional incumbido de apreciar questões de direito público com autoridade de coisa julgada (BARROS, Suzana de Toledo. O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 1996. p. 38-39).
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- instrumento processual pelo qual o cidadão pode postular a reforma das decisões administrativas em caso de excesso de poder -, elaborou-se a doutrina do desvio de finalidade ( detournement de pouvoir).
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Do período iluminista, vale o registro, deve-se a codificação da proporcionalidade inclusive na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789. Verte o art. 8º a seguinte regra: a lei não deve estabelecer outras penas que as estritas e necessárias.
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A partir dos anos 1970, a jurisprudência francesa, em se tratando de medidas restritivas de direito, consagrou a necessidade de ponderação das circunstâncias do caso concreto frente aos interesses enfrentados, usando a técnica daponderação do custo-benefício, cujo procedimento é uma manifestação concreta da proporcionalidade. Assim, as teorias de limitação do poder da França foram recepcionadas pela Alemanha, que erigiu o postulado da proporcionalidade a trato constitucional.
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2 - A PROPORCIONALIDADE E O PROCESSO PENAL
A perspectiva principiológica da Constituição Federal remete ao processo penal, igualmente, o alcance da jurisdicionalização das suas garantias previstas também nesse texto, tendo em vista que adota o Brasil o modelo do Estado Democrático e Social de Direito. A jurisdicionalização do Estado Social diz com a operacionalidade material e não formal dos direitos constitucionais
10. Também concebe no Estado Social uma atuação voltada à “orientação material para uma democracia real” (MIR PUIG, Santiago.
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Función de la pena y teoria del delito em el estado social y democratico de derecho. 2. ed. Barcelona: Bosch, Casa Editorial, AS, Urgel, 1898. p. 22).
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A proporcionalidade contextualiza-se no processo penal como o instrumento para garantir e concretizar valores de índole constitucional no caso concreto
11. Nesse entendimento e em razão dele, concebe-se o princípio da proporcionalidade como de conteúdo formal e material. Entender a proporcionalidade como princípio neutro, defende o autor, cuja função consistiria simplesmente em procurar uma estabilização asséptica de interesses, redundaria desnaturalização de uma instituição que não pode ser compreendida senão desde a perspectiva de interesses que protege (CUELLAR SERRANO, Nicolas Gonzalez.
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Proporcionalidad y derechos fundamentales em el proceso penal. Madrid: Editorial Colex, 1990. p. 227).
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Flavia D’Urso
Princípio constitucional da proporcionalidade no processo penal. São Paulo: Atlas. 2007. p. 81.
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ensina que não são poucas as previsões constitucionais de garantias processuais penais. O constituinte pátrio erigiu tais disposições de forma especificamente penal, como sejam, a presunção de não culpabilidade; vedação de identificação criminal datiloscópica de pessoas já identificadas civilmente; indenização por erro judiciário e pela prisão que supere os limites da condenação; prisão, com ressalva do flagrante, somente ordenada por autoridade judiciária competente com sua comunicação imediata e relaxamento, se ilegal; liberdade provisória; direito ao silêncio e à assistência de defensor e da família; e outras aplicáveis ao processo civil, igualmente, mas de estreita vinculação e relevância ao processo penal: o devido processo legal, desdobrando-se à garantia do juiz natural e competente; contraditório e ampla defesa; igualdade processual, decorrente do princípio da isonomia, transformando-a em paridade de armas; publicidade; dever de fundamentar as decisões; vedação de provas obtidas por meios ilícitos; inviolabilidade de domicílio e sigilo das comunicações em geral e de dados (autorizando-se a interceptação telefônica para efeito de prova penal).
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Nesse sentido é fundamental dizer que houve o ingresso, no catálogo de direitos fundamentais
13. À exceção da necessidade de motivação nas decisões judiciais que se vê prevista no art. 93, IX, da Constituição Federal. Essa disposição constitucional, todavia, não lhe retira a natureza garantística (Idem, p. 83).
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, de um rol de institutos de caráter processual penal que aponta ao Estado, na persecução penal, a sua dúplice função, alhures tratada na implicação da escolha de um modelo estatal de poder no esteio Democrático e Social de Direito: as garantias processuais sob a ótica não só subjetiva de defesa do indivíduo contra atos do Poder Público, mas tambémobjetiva: o elenco dessas previsões consubstancia-se de um conjunto de valores objetivos básicos e fins diretivos da ação positiva dos poderes públicos.
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Assim, entende-se que as concepções subjetiva e objetiva ou formal e material da atuação do Estado (pós-positivismo) na persecução penal o limita, portanto, na restrição de direitos do indivíduo e o obriga positivamente à promoção de garantias processuais.
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O Estado, dessa forma, no processo penal, tem o compromisso de garantir a justiça material. As normas penais (princípios e regras), como todo o ordenamento jurídico, de resto, precisam destinar o homem e sua essencial posição de sujeito destinatário do arcabouço jurídico.
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Dessa forma, a positivação da essencialidade da condição humana assume no processo penal absoluta diretriz dos atos dos poderes públicos e, em especial, neste momento, o do juiz
14. “Aquele que tem a função de atuar como
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garantidor da eficácia do sistema de direitos e garantias fundamentais do acusado no processo penal.” (LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, v. I, 2007. p. 119)
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. O homem é protagonista do drama penal e a sua dignidade é o elemento que unifica, empresta sentido e legitima a organização política de um Estado.
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Não obstante a dignidade humana ter tido o trato de princípio fundamental da República Federativa do Brasil (art. 1º, inciso III, da CF), a realidade é que, de maneira apavorante e escandalosa, na edição de leis prevendo tipos penais grotescos ou, o que interessa mais aproximadamente a este estudo, na adoção de medidas processuais penais, em especial às restrições da liberdade impostas como se automáticas fossem, esse valor é afrontosamente solapado
15. D’URSO, Flavia. Op. cit., p. 82.
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Nesse sentido, o viés positivista, formal e lógico, fortemente incutido nos operadores do processo penal, conduz superpoderes ao Ministério Público e relega à Magistratura um papel menos equivocado de combate a fenômenos criminais, precípuo de políticas públicas a serem implementadas pelo Poder Executivo.
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Os princípios constitucionais no processo penal não se encontram conformados ao contexto real, e a necessidade dessa adequação afigura-se imperiosa.
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Essa aproximação passa, por primeiro, pelo aspecto normativo da Constituição Federal, porquanto, nessa feição, ordenam-se a realidade social e a política de organização do Estado - o Direito Constitucional é direito positivo. Dessa coordenação derivam as possibilidades da força normativa do Texto Maior, cumprindo, nesse desiderato, as espécies princípios constitucionais e as regras, do gênero, norma, estrutural função.
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O cumprimento do caráter normativo das disposições constitucionais afeitas ao processo penal é de atribuição judicial. A esse juiz incumbe conferir efetividade aos princípios constitucionais, interpretando-os de forma hierárquica e atribuindo primazia à dignidade humana.
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Nesse sentido, tem-se a pretensão, de acordo com os elementos até o presente momento contextualizados, de contribuir com elementos teóricos no alcance da concretização da dignidade humana no processo penal.
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A necessidade dessa concretização prescinde de interpretação contemplativa das leis previstas no sistema constitucional e processual penal. A hermenêutica deve ser concretizante, assumindo, nesse mister, a máxima da proporcionalidade, poderoso instrumento de articulação entre os interesses da sociedade e o respeito a direitos fundamentais.
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Nessas premissas, cumpre o Estado, ao final, o seu precípuo papel na solução pacífica das controvérsias (preâmbulo da Constituição Federal) penais
16. SILVA, José Afonso da.
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Curso de direito constitucional positivo. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990. p. 98.
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, e não o de violados direitos, dos quais incumbe observar e garantir.
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Considerou-se, alhures, que a tensão no conflito da liberdade e da segurança social insere-se em cenário jurídico no qual é estabelecida a primazia da dignidade humana na hierarquia da hermenêutica constitucional a solucioná-la. Nessa resolução dos conflitos judiciais decorrentes dessa inevitável ponderação de bens exsurge a máxima proporcionalidade, no intuito de limitar a restrição de eventuais direitos individuais na apreciação do caso concreto
17. A interpretação é vocábulo que pertine a significados de expressão, tradução. Hermenêutica diz com métodos, designando a capacidade natural do ser humano de compreender. (SILVA, Kelly Suzane Alflen da.
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Hermenêutica jurídica e concretização judicial. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2000. p. 14-15)
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18. Interessante anotar a concepção de Juarez Freitas, que defende uma interpretação sistemática, porém voltada à inclusão de valores. Para esse autor, “uma interpretação sistemática realiza sempre uma hierarquização axiológica, de sorte a fazer preponderadamente, inclusiva e exclusivamente, ora a norma superior, ora em caso de antinomia pendente, o princípio superior, recorrendo-se, em todas as hipóteses, expressa ou ocultamente, ao princípio da hierarquização axiológica, notadamente ao lidar com princípios e regras de prioridade, tendo em vista as exigências da prestação justa da tutela jurisdicional” (FREITAS, Juarez. A interpretação sistemática do direito. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 285).
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A norma que permite a invasão a esses direitos individuais deve ser interpretada
19. PEDRAZ PENALVA, Ernesto.
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Constitución, jurisdiccíon y proceso. Madrid: Ediciones Akal, 1990. p. 307.
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. O caráter concretizante da hermenêutica constitucional, bem como do processo penal na efetivação da justiça material, que alia princípios constitucionais de caráter normativo à realidade, demanda do juiz criminal, nas suas decisões, uma interpretação construtiva da lei para que, nos conflitos e nas restrições a direitos fundamentais, permaneça intocado o núcleo essencial desses direitos, qual seja a dignidade humana.
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A esse procedimento presta-se a proporcionalidade. E a sua pertinência no processo penal é mesmo aquela que ensina Ada Pellegrini Grinover
20. GRINOVER, Ada Pellegrini.
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O processo em evolução. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1996. p. 120.
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, quando preconiza a premência da transformação do processo abstrato para o concreto, buscando a sua efetividade e a instrumentalidade no alcance da ordem jurídica justa.
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A adaptação das transformações sociais pelo operador do direito processual penal, em especial pelo juiz, passa, assim, pela necessidade de sua interpretação das leis. Mas não uma interpretação contemplativa, porquanto essa assepsia e mecanicismo não inserem o homem à sua realidade, o que acaba por produzir um esvaziamento do sentido e do sentimento de uma Constituição Federal.
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Na expressão de Konrad Hesse
A força normativa da Constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1991. p. 22.
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, “se o direito e, sobretudo, a Constituição têm sua eficácia condicionada pelos fatos concretos da vida, não se afigura possível que a interpretação faça deles tabula rasa ”. Assim, no que se refere ao âmbito penal, Geraldo Prado
Sistema acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais penais. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001. p. 61.
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ensina que
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a relevância do processo hermenêutico para a imposição dos direitos fundamentais na esfera penal é tão significativa que vale recordar que, se interpretar deriva de “interpres”, isto é, mediador intermediário, de sorte a estabelecer-se no processo de interpretação a mediação entre texto e a realidade [...] para desenvolver-se o processo intelectivo através do qual, partindo da forma linguística contida no ato normativo, chegar-se ao seu conteúdo e significado, o intérprete, esse mediador, principalmente se for o juiz penal, sempre contribuirá decisivamente na escolha dos valores que o guiarão por meio da assunção de significados concernentes a uma determinada concepção de Direito.
A interpretação é uma atividade eminentemente prática no sentido de que juridifica e condiciona os casos práticos e a finalidade de sua resolução
23. BARACHO, José Alfredo de Oliveira.
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Teoria geral da cidadania: a plenitude da cidadania e as garantias constitucionais e processuais. São Paulo: Saraiva, 1995.
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. Assim, a efetivação dos direitos fundamentais no processo penal, principalmente no que toca à dignidade humana e à liberdade, não prescinde de uma interpretação judicial compromissada com a Constituição Federal.
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Dessa maneira, pode-se assim desenhar a conjugação das premissas que caracterizam as concepções interpretativas formais e concretistas ao juiz no processo penal, levando-se em conta, prima facie , a intangibilidade do núcleo essencial da dignidade humana
24. D’URSO, Flavia. Op. cit., p. 95.
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: (a) a linguagem do direito positivo é, em geral, precisa. No caso dos princípios, como anteriormente consignou-se, há necessidade de que sejam a eles emprestada densidade no caso de conflitos, considerando-se o critério de peso ou valor; (b) princípio constitucional é espécie do gênero norma; (c) a fonte do Direito não é só a lei, mas também os motivos determinantes das decisões judiciais. Inclui-se a pré-compreensão da norma ou um corte da realidade social, a que aludem Konrad Hesse e Friedrich Müller, respectivamente. O labor do juiz criminal seria constitutivo
Introdução geral do direito. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1994. p. 61.
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, e não meramente mecânico de adequação dos fatos aos termos linguísticos da norma na aplicação, por óbvio, dos institutos processuais que impliquem principalmente restrição a direitos fundamentais; (d) o processo penal não se desenvolve por mecanismos unicamente de defesa social, mas, preponderadamente, na consecução da justiça material, que, em última análise, é a razão de ser mesmo do processo nas concepções aqui destacadas; (e) a ciência do Direito compreende, também, além da sistemática do direito positivo, as sentenças judiciais; (f) a natureza da prova não é a da verdade real, mas processual
26. FERRAJOLI, Luigi. O direito como sistema de garantias. In: OLIVEIRA JR., José Alcebíades de (Org.).
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Novo em direito e política. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997. p. 101-102.
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3 - UM PARÂMETRO ENTRE A PRISÃO CAUTELAR E A PROPORCIONALIDADE
A imposição da restrição a direitos fundamentais na persecução penal, na preservação de seu núcleo essencial, é operacionalizada pelos subprincípios da máxima da proporcionalidade. A norma de decisão penal eletiva da medida processual restritiva de direitos deve resultar da conjugação, portanto, da adequação ou idoneidade, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito, além dos requisitos legais usuais.
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Assume especial relevo a aplicabilidade do princípio pesquisado nas prisões cautelares, porquanto se trata de medida processual, não obstante de inconstitucional largueza de utilização e sob o modelo de uma intervenção estatal emergencial, como se disse, de inegável feição restritiva a direitos essenciais, o que demanda, indubitavelmente, o manuseio dos conceitos aqui estudados.
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Acertadamente, Luigi Ferrajoli
Derecho y razón, p. 776 e ss.
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afirma que a prisão cautelar é uma pena processual, em que primeiro se castiga e depois se processa, atuando com caráter de prevenção geral e especial e retribuição. Ademais, diz o referido autor, se fosse verdade que elas não têm natureza punitiva, deveriam ser cumpridas em instituições penais especiais, com suficientes comodidades (uma boa residência) e não como é hoje, em que o preso cautelar está em situação pior do que a do preso definitivo (pois não tem regime semiaberto ou saídas temporárias).
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Assiste razão quando bem define que “[...] trata-se, com efeito, de uma técnica punitiva que criminaliza imediatamente a interioridade ou, pior ainda, a identidade subjetiva do réu e que, por isso, tem um caráter explicitamente discriminatório, além de antiliberal
28. .De acordo com o entendimento de Ferrajoli, tal esquema punitivo, uma vez que não encontra escora no empirismo das ações delituosas ou de fatos lesivos expressos em lei, “resulta amplamente substancialista e decisionista: a subjetivação das hipóteses normativas de delito, com efeito, não compromete apenas a legalidade estrita, mas comporta também a subjetivação do juízo, confiado a critérios discricionários de valoração da anormalidade ou perigosidade do réu, que inevitavelmente dissolvem o conjunto das garantias processuais” (FERRAJOLI, Luigi.
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O direito como sistema de garantias. In: OLIVEIRA JR., José Alcebíades de (Org.). Novo em direito e política. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997. p. 98).
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”.
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Para Francesco Carnelutti
29. CARNELUTTI, Francesco.
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Leccionessobre el processo penal. Trad. Santiago Santis Melendo. Buenos Aires: Editora Bosch, v. II, 1950. p. 75.
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as exigências do processo penal são de tal natureza que induzem a colocar o imputado em uma situação absolutamente análoga ao de condenado. É necessário algo mais para advertir que a prisão do imputado, junto com sua submissão, tem, sem embargo, um elevado custo? O custo se paga, desgraçadamente, em moeda justa, quando o imputado, em lugar de culpado, é inocente e já sofreu, como inocente, uma medida análoga à pena; não se esqueça de que, se a prisão ajuda a impedir que o imputado realize manobras desonestas para criar falsas provas ou para destruir provas verdadeiras, mais de uma vez prejudica a justiça, porque, ao contrário, lhe impossibilita de buscar e proporcionar provas úteis para que o juiz conheça a verdade. A prisão preventiva do imputado se assemelha a um daqueles remédios heroicos que devem ser ministrados pelo médico com suma prudência, porque podem curar o enfermo, mas também podem ocasionar-lhe um mal mais grave; quiçá uma comparação eficaz se possa fazer com a anestesia, e sobretudo com a anestesia geral, a qual é um meio indispensável para o cirurgião, mas ah se esse abusa dela!
Ainda, Aury Lopes Junior
Direito processual penal e sua conformidade constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, v. II, p. 59.
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refere-se que,
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infelizmente, as prisões cautelares acabaram sendo inseridas na dinâmica da urgência, desempenhando um relevantíssimo efeito sedante da opinião pública pela ilusão de justiça instantânea. O simbólico da prisão imediata acaba sendo utilizado para construir uma (falsa) noção de “eficiência” do aparelho repressor estatal e da própria justiça. Com isso, o que foi concebido passa a ser “excepcional”, torna-se um instrumento de uso comum e ordinário, desnaturando-o completamente. Nessa teratológica alquimia, sepulta-se a legitimidade das prisões cautelares.
A necessidade cautelar vincula-se à existência concreta do fumus commissi delicti e do periculum libertatis. Assim, deverá haver elementos seguros que indiquem ter o acusado cometido o delito cuja materialidade deve estar comprovada, bem como se a sua liberdade realmente representa ameaça ao tranquilo desenvolvimento e julgamento da ação penal que lhe é movida ou à futura e eventual execução
31. DELMANTO JR., Roberto.
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As modalidades de prisão provisória e seu prazo de duração. Rio de Janeiro: Renovar, 1998. p. 68.
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As medidas de antecipação devem ter natureza estritamente processual - assegurar o processo e a prova -, e não penal, pois de caráter preventivo, geral e especial
32. SANGUINÉ, Odone. Op. cit., 295.
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. Em outra: “Não são medidas de punição antecipada, mas mecanismos empregados como instrumento para a realização do processo ou para garantia de seus resultados
33. Afrânio da Silva Jardim afirma, todavia, que, em especial, a prisão decorrente de sentença condenatória recorrível não é cautelar, mas satisfativa de tutela (GOMES FILHO, Antonio Magalhães.
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Direito processual penal. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense. p. 276).
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”.
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A prisão em flagrante, que resvala na captura do agente criminoso, tem por principal objetivo a obtenção inicial da prova
34. Delmanto Jr., op. cit., p. 109.
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. Relaciona-se com a necessidade de se tornar os depoimentos das testemunhas, ouvir o conduzido e apreender eventuais objetos relacionados ao cometimento do delito. O óbice à fuga pode evitar a sua consumação e assegurar a identificação do autor. O flagrante vincula-se, assim e também, a questões de segurança pública.
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Prisão preventiva consubstancia-se da mais característica das cautelas penais
35. GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antonio Scarance; GOMES FILHO, Antonio Magalhães.
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As nulidades no processo penal. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 289.
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. A sua imposição deve resultar do reconhecimento pelo juiz do fummus comissi delicti e do periculum libertatis. Diz o primeiro pressuposto com a prova da existência do crime e indícios suficientes de autoria ( art. 312, parte final, do CPP ). O segundo com a garantia da ordem pública, conveniência da instrução criminal ou para a aplicação da lei penal ( art. 312, primeira parte, do CPP ).
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Nos termos do § 1º do art. 408 do Código de Processo Penal, a decisão de pronúncia, que representa o julgamento sobre a admissibilidade da acusação nos crimes de competência do Tribunal do Júri, submete o réu pronunciado à prisão, também de natureza provisória (salvo se presentes os requisitos no § 2º da disposição mencionada).
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Pode-se dizer que prisão provisória é aquela que decorre de sentença condenatória recorrível. É o que dispõe o art. 393, inciso I, e art. 594 do diploma processual penal. Tem por objetivo assegurar o resultado do processo diante do perigo de fuga do condenado em face do primeiro pronunciamento jurisdicional desfavorável
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A prisão temporária foi instituída, como se disse, pela Lei nº 7.960/1989 . Trata-se de medida excepcional, admitida na fase investigatória de crimes particulares graves, previstos pelo art. 1º, inciso III, da mencionada lei, desde que imprescindível para a investigação ou quando o indiciado não tiver residência fixa ou não fornecer elementos necessários ao esclarecimento de sua identidade. Entende-se, à sua decretação, sejam conjugados os incisos I ou II com o III, a caracterizar o fummus comissi delicti.
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Assim, a manutenção da prisão provisória ou a sua decretação, em todas essas espécies, não é automática, tem caráter excepcional e exige requisitos de cautelaridade
37. LOPES JÚNIOR, Aury. Op. cit., p. 60.
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4 - A IMPOSIÇÃO RESTRITIVA DE DIREITOS NO PROCESSO PENAL E A LIBERDADE INDIVIDUAL NAS PRISÕES CAUTELARES
A perspectiva normativa dos princípios da não culpabilidade e excepcionalidade da prisão confere aos direitos fundamentais uma prevalência ao interesse também protegido constitucionalmente, que é o da segurança das pessoas na sociedade (art. 114 da Constituição Federal )
38. GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antonio Scarance; GOMES FILHO, Antonio Magalhães. Op. cit., p. 115.
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Aliado ao maior prestígio das garantias constitucionais processuais penais previstas no catálogo do art. 5º da Carta Magna , no atributo mesmo de seu modelo democrático e social de direito, sob a dimensão positiva e negativa dos direitos previstos, erige também, no processo penal, o postulado da proporcionalidade e a necessidade da operacionalização dos seus subprincípios
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Essa concepção não implica a inviabilidade das medidas restritivas necessárias à persecução penal, como é o caso da prisão cautelar. Vincula legalmente, todavia, o Magistrado, nesse mister, a uma interpretação constitucional, nos moldes desenvolvidos neste trabalho, e, ainda, à prolação de uma decisão que considere o âmbito da norma.
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Assim, a imposição restritiva de direitos no processo penal, advinda da ponderação dos interesses da sociedade em confronto à liberdade do indivíduo, a preservar o núcleo essencial e intangível dos direitos - a dignidade humana -, deve ser adequada, necessária e proporcional
40. D’URSO, Flavia. Op. cit., p. 116.
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A proteção do mínimo legal (Ferrajoli), ainda que em desfavor da maioria, igualmente se viu em quadra própria, garante a manutenção e a unicidade do ordenamento jurídico e, em última análise, a sobrevivência do Estado, que pretende ser Democrático e Social de Direito.
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Preservar a dignidade humana na ponderação de interesses envolvidos no processo penal, quais sejam, a liberdade e a segurança, pelo mecanismo da proporcionalidade e seus subprincípios, implica, portanto, preservar a própria segurança da comunidade.
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Nesse papel do Estado, Ernest Brenda
41. BENDA, Ernst; MAIHOFER, Werner; VOGEL, Hans-Jochen, HESSE, Konrad; HEYDE, Wolfgang (Org.).
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Manual de derecho constitucional. Madri: Marcial Pons/Ediciones Jurídicas y Sociales, 1996. p. 559.
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ensina que:
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y cuando actué el Estado se contenga em um primer momento y unicamente entre em acción cuando no quepa esperar ya uma composición adecuada del conflito. Y cuando actuéel Estado, deberá proponerse dotar a los ciudadanos y grupos sociales de uma conveniente participación en los valores comunitarios. En tal processo, los derechos fundamentales o el principio de la proporcionalidad inspirarán y limitarán la acción del Estado. En los conflitos sociales el Estado nos es parte, no es defensor de interesses partidários, sino más bien custodio imparcial del bien común.
Tendo em vista os efeitos criminógenos do cárcere, não se pode sujeitar o indivíduo e a sua liberdade pessoal a um esforço maior do que aquele que se pode exigir de quem se presume inocente. Portanto, deve haver sensíveis diferenças entre o tratamento dispensado ao sujeito passivo da situação jurídica processual penal e o preso já condenado por sentença transitada em julgado, uma vez que tratam de situações distintas, exigindo tratamento fático diferente.
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As medidas cautelares não se destinam a “fazer justiça”, mas sim a garantir o normal funcionamento da justiça através do respectivo processo (penal) de conhecimento. Logo, são instrumentos a serviço do instrumento processo; por isso, sua característica básica é a instrumentalidade qualificada ou ao quadrado
42. LOPES JÚNIOR, Aury. Op. cit., p. 104.
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Nesse sentido, assiste razão Aury Lopes Junior
, quando afirma que, no Brasil,
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as prisões cautelares estão excessivamente banalizadas, a ponto de primeiro se prender, para depois ir atrás do suporte probatório que legitime a medida. Ademais, está consagrado o absurdo primado das hipóteses sobre os fatos, pois prende-se para investigar, quando, na verdade, primeiro se deveria investigar, diligenciar, para, somente após, prender.
Por fim, constata-se que a cultura de urgência disseminada na sociedade de risco afeta o tempo do Direito
44. Segundo OST, as forças instituintes (tempo) se moldarão às formas instituídas (direito), que, com o desenvolvimento social (com passar do tempo), pedirão para serem substituídas por novos modelos instituintes. Esse ritmo nos conduz à “temperança”, que é a sabedoria do tempo, a justa medida da continuidade e da mudança que assegura o equilíbrio das relações sociais (OST, Francois.
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O tempo do direito. 1. ed. São Paulo: Edusc, 2005. p. 377).
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, bem como enfraquece as garantias fundamentais de liberdade e tolerância e privilegia o poder judicial em detrimento ao saber judicial.
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| Observação Editorial Síntese 1) As opiniões publicadas neste artigo são de exclusiva e integral responsabilidade do(s) autor(es), não refletindo, necessariamente, a opinião do Editorial Síntese. |
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